Se há um recurso que recomendo a todos os que se relacionam com portadores de Alzheimer é o de realizar registros de temas variados que compõem o percurso de todo o ser humano. No caso: a infância e nela, o bairro e seu entorno, a escola, professores, os amigos, brincadeiras e os personagens importantes desse período que, com paciência e respeito ao limite do portador vão tecendo belas produções. Tempo de muita fecundidade com as descobertas que essa ação proporciona, sem falar da alegria e aprendizado que ocorrem no decorrer do processo. Muito bom saber das rodas de histórias promovidas pela vovozinha (minha bisavó) a aquecer as noites frias e estreladas daquela São Carlos de tempos idos... Nesse compasso, viajei por outras fases do desenvolvimento da minha mãe, pois colhi relatos da adolescência e idade adulta dentre outras.
Hoje, com o avanço da doença instalada, asseguro que ainda me valho dos fragmentos das lembranças que transcrevi com ela. Exemplo disso ocorreu a 2 dias atrás. A cuidadora do período noturno teve um compromisso impedindo-a de chegar no horário de costume. Como minha mãe tem engasgado com muita facilidade optei em não deixá-la sozinha e fiquei com ela até o retorno da cuidadora. Tem sido raro o dia em que ela tem conseguido proferir algum som e palavra. O seu olhar vivo e esverdeado (cor dos olhos dela) tem expressado sofrimento e exaustão. Busco tranquilidade e alegria nesse momento igualmente difícil para mim. Lembrei-me que numa das gavetinhas do velho criado mudo havia a letra do hino da formatura da minha mãe. Cantei para ela, junto de outras canções que ela sempre apreciou. Fazendo carinho nos seus cabelos percebi que ela se acalmava. Interrompi nossa cantoria por algumas vezes a fim de retirar o excesso de secreção na sua boca, como resultado da impossibilidade da deglutição. Esse gesto de cantar nos possibilita o contato possível pelo qual procuro trazer pedacinhos de realidade diante do que ela ainda apresenta. Assim, nos encontramos e nos amamos no formato permitido pela inexorabilidade do curso da nossa vida, mas sempre vida!
Um beijo a todos os que devotam instantes de carinho com os frutos colhidos no caminho que a vida me concede. Gratidão para cada um dos meus seguidores. Vera Helena, sempre viva - 21/08/14