Quem sou eu

Meu nome é Vera Helena. Meu interesse e objetivo consiste em conversar e trocar impressões e experiências sobre Alzheimer. Minha mãe, (foto acima) é portadora desta patologia e acho importante que a troca exista no sentido de acrescentar conhecimentos e gerar espaços para desabafos entre cuidadores, assim como eu. Dentro do que me proponho oferecer, sinto - me capaz de abordar sobre cuidadores, suas relações com o portador e familiares e sobre o cotidiano que envolve a todos os implicados nessa causa. Para saber mais, em cada segmento há uma justificativa desenvolvida com o objetivo de ajudá-lo. Julgo oportuno mencionar que passado algum tempo, percebo que hoje possuo um trajeto impregnado de experiências diversas pois os desafios acontecem todos os dias. A necessidade de dialogar com pares aumenta a cada dia, pois há momentos em que a solidão e a impotência invadem minha vida! Que tal olharmos para este tema com mais proximidade e conversarmos sobre Alzheimer? Pensem nisso e sobre isso...

terça-feira, 13 de setembro de 2011

13.09.11

Alzheimer : mudanças e caminhos

“Mas se tudo fosse como parecia nas minhas ilusões de menina, eu provavelmente passaria boa parte do meu tempo olhando pela janela, não para ver as árvores ou as nuvens, mas bocejando na prisão excessiva da coerência.” (Lya Luft)

A palavra mudança gera indagações diversas, porque pressupõe uma infinidade de caminhos e direções.
No caso a ser descrito, a mudança refere-se à vida da minha mãe e de todos os envolvidos direta e indiretamente com ela. Sobremaneira, com as alterações que a doença de Alzheimer estabelece. Essa patologia abrange estágios que, na sua evolução, requerem outras posturas daqueles que prestam cuidados.





Confesso que tremi nas minhas bases teóricas, físicas, emocionais e nas estruturais quando ouvi da cuidadora do corpo de apoio da minha mãe, daquela em quem depositava confiança plena, que estava impossível desempenhar o seu trabalho. A resposta dela diante das exigências últimas tornava-se insuficiente! E eu sempre confiei nela e, por causa dela, eu retornava para minha cidade e casa muito tranqüila e segura, pois sabia que minha mãe estava sendo devidamente tratada. A firmeza, a serenidade, a tomada de decisões e procedimentos, aliados à fé e o uso ético do espaço sempre foram características positivas no seu trabalho diário. Inúmeras vezes ouvi dela: “Vera, eu amo a sua mãe.” Ou então: “Sou muito grata a vocês, pois nesta casa eu aprendi muita coisa que não sabia, mais ainda com a sua mãe.” (2008-9) Seguido de: “Agora não dá mais, pois não estou mais dando conta, está ficando perigoso, meus braços doem, tenho ficado noites sem dormir por cansaço e não consigo fazer mais o serviço para o qual fui contratada.” (2010)
Saliento que essa pessoa enquadra-se no que a literatura denomina de um cuidador formal, portanto aquela que, de acordo com Mendes (2005) possui grande responsabilidade pelos serviços prestados ao idoso em domicílio.
Nesse momento, compreendi também as limitações de um cuidador quando o seu trabalho é desempenhado no domicílio do paciente. Alguns recursos e o auxílio de outros profissionais seriam fundamentais. A situação estafante que essa cuidadora revelava, relacionava-se com o percurso efetuado até aquele momento. Ela se apercebia do processo de finitude e fragilidade da pessoa entregue aos seus cuidados. Ambas apresentavam-se debilitadas e romper esse clima era vital, necessitando as mesmas de ajuda externa.
A questão maior era: por onde começar? Afinal, cinco anos não são cinco dias ou meses! O lado emocional se exacerbou e administrar a minha ansiedade constituiu- se numa tarefa de peso. Ansiedade esta misturada com culpa, medo, temor do novo, já que, retirá-la da sua casa sempre foi algo em que me posicionei contrária. Sempre acreditei e investi na importância do poder de pertencimento e identificação com cheiros, lugares, pessoas, paisagens, vizinhança e objetos que só a moradia em casa proporciona. No caso da minha mãe isso era mais redundante, na medida em que ela sempre se revelou uma defensora ferrenha da sua cidade natal. Até hoje esse local é verbalizado com intensidade. Na sua fala há sentido e tônus de uma história de uma e de mais vidas! Refiro-me àquilo que Brandão (2008) denomina de comunidade afetiva, que traz consigo uma teia de significados e de registros.
Além disso, havia a consciência das leituras efetuadas e da realidade em si de que essa vinda indicava a piora de um estado, destacadamente da memória, cada dia mais focada num passado-presente, do qual poucos sujeitos integram o cenário. Sabia também da escassez de indivíduos preparados para a exigência que cada estágio do Alzheimer demanda no que diz respeito ao entendimento e criação de “novos espaços de conversas”.
Quando tratamos de Alzheimer, o empenho dos familiares ou responsáveis, assim como o preparo de profissionais na área da saúde voltam-se para o cuidar medicamentoso, para a segurança do idoso, a busca dos direitos legais, ações estas maioria das vezes oferecida por órgãos públicos ou particulares.
Não obstante, é sabido que na sociedade brasileira é incipiente a realização de um trabalho específico de escuta e de ações para dar voz aos sons e sinais que cada portador apresenta. Na maioria das vezes é ausente ou centrado numa piedade ingênua, num assistencialismo inócuo, permeado pela infantilização do idoso. Essa postura pouco constrói no sentido de proporcionar facilidade de comunicação nos envolvidos no fazer diário, a fim de minimizar a distancia que, sabemos, encaminha-se para um quadro de solidão. O que se assiste é o pouco investimento e preparo dos profissionais para essa função e enfoque, justificados por limitações de conhecimento científico e comprovações mais assertivas no que tange à doença de Alzheimer. No registro dos avanços, são poucos os caminhos com definições precisas.
No meu caso, somava-se a isso, a visão diária daquela mulher forte, altiva, bonita, culta, a caminhar sempre pelas ruas e avenidas, agora dependente de uma cadeira de rodas e de muitas outras ajudantes no desempenho de funções básicas e naturais.
Frente aos fatos e evidências, iniciei o meu plano de ação revestida de vigor. Visitei muitas instituições de longa permanência, focada no que considerava essencial para o bem estar da minha mãe e tranqüilidade dos familiares, mais exatamente minha e do meu irmão, os responsáveis diretos por ela.
A cada dia de reconhecimento dos locais, certificava-me de quanto o Brasil encontra-se deficitário no que concerne ao envelhecimento da sua população, mais gravemente quando diz respeito a lugares dignos e merecedores de indivíduos que por razões diversas necessitam de acolhimento respeitoso, com um corpo profissional capacitado e humanizado.
Diante das prioridades elencadas e adequadas às possibilidades financeiras, encontramos o lugar viável para a mudança da casa para a clínica, numa cidade próxima à que resido.
Uma legião de voluntários engajou-se no propósito e processo da arrumação, que aconteceu num ambiente amistoso e sereno. Minha mãe pouco ou nada percebeu, gostando muito das visitas recebidas. A cada abraço, palavras de exemplos positivos deixados por ela. Confesso que em vários deles emocionei-me fortemente, disfarçando muito as lágrimas derramadas naquele clima de despedida perante amigos e familiares muito queridos e amados!
No lugar que consideramos nosso porto seguro, depositamos nossas mais puras esperanças e expectativas juntamente com os nossos temores e inseguranças.
Despedimo-nos dela sem que a mesma tivesse a sensação de estar integrando uma realidade estranha. O estágio da sua memória foi nosso aliado nesse momento.
 Assim, um caminho novo delineou-se e aprender, crescer e viabilizar oportunidades para o trajeto resultou das ações experienciadas dia a dia, passo a passo e sempre.
Juntas, nós vivenciamos a adaptação. Na primeira semana me fiz presente todos os dias, seguindo as orientações dos responsáveis da clínica. Passear com ela, ocupar todos os espaços possíveis, visitar e revisitar os canteiros com flores de espécies e cores variadas, ouvir o canto dos pássaros, eram as atividades efetuadas com constância. Assim como prosear com os outros moradores, caminhar pela área externa, acenar para os vizinhos, curtir o calor do sol de montanha até chegar à beira do rio e conversar sobre feitos de pescadores. Isso colaborou para o tempo de integração e participação, inclusive em alguns eventos de datas cívicas, religiosas e populares, realizados na nova morada.
Particularmente sinto que esta vivência tem sido de um valor imensurável em todos os aspectos que eu possa supor ou prever. Muita riqueza e fecundidade a cada dia e encontros, permeados de emoções, já que, repetidamente, toda vez é a primeira, com muitos abraços, lágrimas e palavras de ordem para que eu não me ausente mais e permaneça ao seu lado. Depois, não se ressente da minha saída, até porque eu sei que estou me despedindo dela, mas ela não sente assim. Para isso, uso de artifícios calcados na realidade próxima dela e fortalecidos nos limites possíveis. Retiro-me daquele lugar, num refletir constante sobre o que posso realizar para me inserir mais.  E, com cautela, sugerir o que os implicados diretamente com ela também podem desempenhar no fazer diário. No caso, como sinaliza Brandão (2008), acreditar na construção de uma rede de inter-relações confirmada pela força da compreensão do outro e de si, por intermédio dos pares, dos iguais do local salvaguardada as diferenças dos mesmos.
Tenho procurado conhecer a nova cidade, suas características, possibilidades, história, pessoas de centros comerciais, e nela me deparei com antigos amigos, conhecidos, ex-alunos, que nas conversas, compartilham meus anseios. Isso ameniza, fortalece e me encoraja na trajetória perpassada pela solidão, já que a cumplicidade e retorno ansiados numa relação desaparecem com fluidez no estágio da patologia em que minha mãe se encontra.
Nesse contexto, o que vislumbro e presencio é a perda gradativa da memória da minha mãe e avidamente busco sugar tudo o que me resta, no sentido de estar com e para ela, o tempo que for possível, o que tenho conseguido até a presente data.  Atentar para as modificações, celebrar a sua saúde que ainda permanece de boa qualidade, usar de recursos conhecidos para verificar o nível das lembranças para me certificar do que posso validar nas relações presentes e vindouras. Essas têm sido parte das estratégias utilizadas. Aponto para um estado de observação constante e muito atento, a fim de gerar entendimento diante da voz e som possível, também dos códigos, sinais e ruídos, que dentre outras formas de expressão, constituem-se na comunicação cabível! Corpos e mentes que “falam” e que precisam ser atendidos e compreendidos, incessantemente, para evitar o exílio simbólico, do qual lutamos sempre contra!
Desafios cotidianos numa trajetória ímpar, porque única e fadada à quebra de pautas, diante das surpresas que os neurônios e suas conexões nos pregam, num universo de perguntas ainda maiores que as respostas. Que nos estimulam a buscar intensamente inclusive no que ainda desconhecemos, com a convicção de que a investida sempre é válida e interessante.
Finalizando, entendo que na viagem da casa para a clínica outras linhas de conduta pedem passagem e abrigo. Dentre elas, um conceito, recurso e/ou virtude desponta potencialmente. No caso: o silêncio! Que, independentemente dos estágios de um portador de Alzheimer, deve ser introduzido como ponto de partida, chegada, de reflexão enquanto um aliado nas relações estabelecidas entre um cuidador e portador.
Segundo Silva, “Ouvir cria um silêncio sagrado. Talvez o mais poderoso instrumento de cura, porque, quando escutamos generosamente as pessoas, elas podem ouvir a verdade sobre si mesmas, ainda que pela primeira vez. No silencio de ouvir, você pode conhecer a verdade de toda pessoa.” ( APUD Brandão, p. 90, 2008).
Concluindo, enfatizo que despender olhares e fazeres ao encontro de novos saberes produz inquestionavelmente rumos diferentes na caminhada de cada um dos envolvidos, que por razões diversas encaram o desafio de cuidar e ser cuidado quando o tema é Alzheimer.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRANDÃO, Vera Maria Antonieta Tordino. Labirintos da memória: quem sou? São Paulo: Paulus, 2008.

DIAS, Ernesta Lopes Ferreira, WANDERLEY, Jamiro da Silva, MENDES, Roberto Teixeira.
Orientações para cuidadores informais na assistência domiciliar. Campinas, SP. Editora da UNICAMP, 2005.

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Alzheimer: desafios e confrontos entre o ideal e o possível

Vera Helena Rodrigues Zaitune*
Diretamente para o Portal
      
“Não há passado nem presente, nem futuro. Há o tempo”.
          O tempo é a vida e a vida é a História”.
 (Santo Agostinho)

Quando nos referimos à doença de Alzheimer, o tempo destacadamente assume contorno e sentido profundos. No caso, tanto o tempo cronológico, regido por Chronus, quanto àquele que nos edifica internamente, o Kairós, assumem posições relevantes que merecem algumas teceduras. Ressalta-se que o tempo enfocado passa a ter no mínimo dois olhares sobre o portador de Alzheimer, cada dia mais atento aos movimentos que se alternam, evoluem, retrocedem, estagnam numa espiral que podemos denominar do novo tempo dentro do que foi vivido até o presente momento.


Esses olhares múltiplos dizem respeito ao cuidador, familiar ou não, e outros indivíduos que se mobilizam na tentativa de entenderem os comportamentos advindos daquela pessoa que, por diferentes trajetos, pertence aos vínculos que lhes sugere pertencimento e identificação.
O texto passa a ser escrito na primeira pessoa porque, nessa abordagem, afirmo que são minhas as inquietações derivadas dos momentos, movimentos e comportamentos verificados na evolução do quadro da minha mãe, que acompanho e observo intensamente no mínimo há cinco anos.
O tempo tem sido meu fiel parceiro e algoz. Parceiro porque sinaliza para a relação da vida na vida possível, mas sempre Vida! Algoz, porque impõe limitações e, dentre elas, sinaliza as muitas mudanças que acontecem.
Por exemplo, percebo a necessidade da locação de uma cadeira de rodas. Pontuo para a minha parceira nos cuidados maternos, conosco também nestes cinco anos, que a finalidade deste aparelho consiste em proporcionar mais segurança para os cuidadores e liberdade para a minha mãe, que poderá se locomover para diferentes lugares, tais como, a igreja e para “assistir”, dentro das suas possibilidades, as tão saudosas missas, idas aos supermercados, visitas às amigas que a conhecem, e a quem ela, ardilosamente, justifica o “esquecimento” pela ausência dos encontros, por terem se mudado para lugares muito distantes, uma das outras, sendo estes os argumentos que funcionam como estratégia e camuflagem, posto que os locais são os mesmos.
Nesse contexto do uso da cadeira de rodas, julgo oportuno relatar que, no início, minha mãe demonstrou muita resistência para nela permanecer, alegando preocupação sobre o que “iriam pensar dela”, sensação de “vergonha” porque no imaginário do outro, ela poderia estar passando a idéia de ser uma inválida, já que insistentemente afirmava que podia fazer todo o percurso a pé ou de ônibus! Fato perfeitamente compreensível, pois ela sempre se locomoveu a pé ou de ônibus, principalmente depois que se aposentou como professora primária, na cidade na qual reside, e na qual vivi e há 39 anos não resido mais. Ou seja, no estágio que se encontra esta fase alojada na sua memória, essa disponibilidade de locomoção se constitui na sua verdade!
Minhas idas quase semanais são dedicadas aos cuidados e apoio à estrutura montada para ela. E, a cada encontro, marcado por inúmeros reencontros, pois sou recebida e abraçada várias vezes depois de poucos minutos de ausência, percebo diferenças aparentes ou sutis no seu quadro demencial.
Embora longe e perto, demonstrado pelo olhar percorrido naquele Shopping decorado para as festas natalinas, sinalizo que o momento mais fascinante do passeio na cadeira de rodas foi assisti-la abraçando uma amiga do “seu” tempo... Um abraço com traço e lastro efetivamente encontrados!
Na contrapartida, presencio que o portador passa por períodos de angústia, desespero e muito sofrimento; vivenciados diversas vezes quando essa situação recorre acrescida de outras vontades, iniciativas e desejos sempre muito solicitados, portanto repetidamente sofridos!
Integrar e participar de encontros e movimentos relacionados à doença de Alzheimer tem sido a minha maneira de entender, discutir, aprender e repassar o aprendizado para as cuidadoras, para enfrentar o novo que nos conduz a novos trajetos, às vezes carregados de êxito, e noutros com resultados pífios, ou com ineficácia total na medida experimentada!
Frente a esse agir contínuo, pontuo que o conceito de verdade, atrelado à memória e suas fases, sempre me colocam na posição de acertar, errar, crescer, aprender, ensinar, avançar e retroceder, dentre algumas ações vitais no processo dos saberes e fazeres que sempre me provocam e inquietam sobremaneira.
No que tange à verdade, memória e estágios da patologia, confesso, por várias vezes, subverter o preconizado na direção de nunca omitir revelações, calcadas na realidade, o que tem se mostrado um recurso positivo, porque consigo minimizar angústias e dores de um passado extremamente sofrido, como no caso da minha mãe. Nos seus 86 anos de existência, já perdeu dois filhos, sendo que um deles suicidou-se aos 23 anos. Do outro filho, permaneceu ao seu lado em fase de câncer terminal por seis meses ininterruptamente! Entre estas duas perdas viscerais, assistiu à partida do seu companheiro de jornada. Hoje, dos seis que éramos, somos três.
Então, quando minha mãe pergunta por um dos meus dois irmãos já partidos ou sobre o motivo do atraso do  meu pai para o almoço, eu respondo que o local em que ele foi comprar madeira não tem telefone, justificativa verdadeira para a época em que isto efetivamente acontecia. Quanto aos meus irmãos, respondo sobre uma verdade procedente para a fase da memória dela. No caso: “Mãe, o R. está no trabalho dele e o P. ainda não chegou porque se encontra na faculdade”. Continuo nesse procedimento quando, tomando-me por uma irmã, ela indaga sobre a mamãe ou o papai. Uso como estratégia sempre devolver a pergunta questionando o motivo de ela me perguntar. Intencionalmente, esse recurso me proporciona mais “folga” a fim de eu ter mais garantias de uma resposta coerente com a necessidade do momento. Porque as alterações de papéis e funções dentro destes diálogos são extremamente susceptíveis a mutações muito rápidas, já que em algumas vezes, na hora da resposta, eu voltei a ser a Vera, a filha! Mas, quando permaneço sendo a Mafalda (uma tia falecida) e como sou sabedora de uma boa parte da história familiar, respondo com um argumento relacionado à fase coerente com a questão efetuada por ela. Por exemplo: “A mamãe está ajudando o papai na padaria, porque hoje o padeiro faltou”. História essa que, registrada em memórias, através de questões muito breves relacionadas a diferentes segmentos da sua vida, obteve com respostas verbalizadas por ela, quando ainda conseguia articular a lembrança possível, muitas vezes confirmada por alguns familiares.
Registrei-as e as imprimi, entregando-as às cuidadoras, relatando-lhes sobre os conteúdos aflorados por suas evocações, para tomarem consciência dos fatos a fim de se valerem dessa leitura quando em momentos de tristeza ou nos surtos nos quais quer se mudar para a casa dela, na qual nasceu e cujo prédio ainda existe. Nos choros incontidos pela saudade dos que se foram, no desespero pelas chaves perdidas, pelo fogão que “acha” que esqueceu aceso, na criança que se esqueceu de amamentar. Também por ter se esquecido de despertar na hora certa para entrar na escola, na qual se formaria normalista, assim como, no desconforto revelado ao se dar conta da perda da jardineira que a levaria à usina de cana de açúcar em que lecionou por 10 anos. Como ficariam os alunos?
Merece ser destacado que por algumas vezes, fazer a leitura dessas memórias ainda funciona como bálsamo em instantes ou horas de pânico, em outros momentos ela interditou a referida leitura, alegando cansaço ou tristeza pelas lembranças contemporizadas.
Discorrer sobre esse tempo de muito crescimento e aprendizado tem gerado em mim movimentos e reações variadas. Há momentos em que pareço ter perdido meus sentimentos, sobretudo quando preciso tomar decisões rápidas que, sei, vão implicar nas relações, intra e inter pessoais, que envolvem o entorno familiar. Noutros, fragilizo, sofro, avanço, recuo, num contínuo esperançar de forças nas suas mais diferentes interfaces. Mas prossigo sempre!
Muito do que consegui até a presente data, no que diz respeito à estrutura desenvolvida para os cuidados da minha mãe, deve-se aos cursos e leituras realizadas, incessantemente!   Meus registros, aqui transcritos, direcionam-se para uma, dentre tantas alternativas de diálogo com essa patologia, que indubitavelmente tem muito a pesquisar e oferecer como ponto de apoio aos familiares e cuidadores dos portadores de Alzheimer, urgindo mesmo uma somatória de forças conjuntas e institucionais perante o aumento da população idosa no Brasil e a demanda atenta para as patologias que este avanço etário requer.
Concluindo, como diz Bobbio (2007), somos aquilo que lembramos. Conversar sobre a verdade do tempo em que a memória da minha mãe se aloja me faz crer que é uma tentativa válida porque falamos de protagonistas de um filme do qual ela é artífice também, além de manter a oralidade, a relação afetiva e o estímulo constante ao repertório cognitivo e intelectual nela presente!
Iniciei e finalizo abordando sobre o TEMPO. Nele muito se ensina e aprende. Acima de tudo nos faz apreender e conduzir positivamente o inexorável!
Referências
BOBBIO, Norberto – O Tempo da MemóriaDe senectude – Rio de Janeiro: Campus, 1997.
*Professora, Mestra em História da Educação, Educadora e Cuidadora da mãe, portadora de Alzheimer – São José dos Campos S/P.






                                                 


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